Como falei na última reunião, meu projeto de colaboração para a Biblioteca é o que eu estou chamando de áudiolivros - livros com duas linguagens, que possam permitir aos nossos alunos que não estão alfabetizados "ler" os livros que querem, assim como estimular em todos o gosto pela leitura, sem depender de um "ledor".
A luta pelo livro acessível está bem acirrada. Isto é, de um lado os cegos principalmente, que demandam poder comprar livros - de qualquer tipo ficção ou não -em formato acessível, ou seja, digitalizados, para serem lidos por seus ledores de tela. De outro, encontram-se as editoras alegando que entregar o livro em CD é um prato cheio para a pirataria.
Enquanto esta briga não se decide, o que nos resta é fazer o nosso próprio acervo, o que também nos permite usar a criatividade, como a que foi usada no livro infantil postado aqui, sob o título A VEZ DA VOZ.
Hoje tive a oportunidade de trabalhar com alguns alunos da comunidade que tem ótima dicção e explorar a sonorização de um livro infantil da Ana Cláudia Ramos. Fiquei emocionada, não tanto com o resultado, que ainda é bem amador, mas com o processo de desenvolvimento, que acabou inclusive chamando a atenção de outros alunos.
Logo estarei disponibilizando para todas o primeiro áudiolivro do acervo da nossa biblioteca.
Aguardem.
Enquanto isso, colo aqui uma entrevista com Elizete Lisboa, uma professora mineira, que é bem mais ousada do que eu. Ela começou a escrever os livros infantis que queria ver em duas linguagens: em escrita comum e em braile.
Elizete Lisboa nasceu em agosto de 1951, na cidade de Coluna (MG). Com 9 anos de idade, aprendeu o braile, o que colocou em sua mão o maravilhoso mundo da leitura. Estudou inglês, piano e fez curso de letras na Universidade Federal de Minas Gerais. Hoje, dá aulas de português. Na sala de aula, seu universo é a criançada, seus alunos. E foram eles a grande força motivadora e inspiradora para a produção de quatro livros infantis, todos contando com a versão escrita comum e em braile. Rosa e o gato, Quero brincar, Que será que a bruxa está lavando?, e A bruxa mais velha do mundo, todos produzidos entre 2004 e 2006. Não bastasse suas realizações, luta por uma escola inclusiva, caracterizada pela diversidade na sala de aula. Educação para todos é o seu lema.
Onde passou sua infância?
Nasci numa pequena cidade, Coluna, que fica no interior de Minas Gerais. Era o ano de 1951. Coluna não tinha luz elétrica, as famílias estavam habituadas aos lampiões e lamparinas. As notícias chegavam devagar, atrasadas, ou simplesmente não chegavam. Braile, ler com as mãos, sobre isso certamente ninguém nunca tinha ouvido falar. Meus pais eram gente do povo, de poucas posses. Na nossa casa havia muitas crianças. E fartura de bichos: gatos, cachorros, dezenas de galinhas. Livros, porém, não havia.
Como foi sua trajetória escolar?
Em Coluna só havia uma escola. Foi lá que comecei meus estudos, aos sete anos de idade. Era menina quase cega, por causa de retinose. A cegueira viria alguns anos depois. Não enxergava nada no quadro, nem no caderno. Apesar dessa limitação, a escola de Coluna foi importantíssima e inesquecível para mim. Havia as histórias e os poemas que me encantavam. Penso que a professora gostava de literatura, e vivia esta sua paixão também na sala de aula. Os livros me fascinavam. Foi na escola que tive contato com livros, pela primeira vez. Daí por diante, fariam sempre parte da minha vida. Havia uma complicada diferença entre mim e as outras crianças. Elas aprendiam a ler. Aprendiam a escrever. Eu não. Mas isso não me fazia infeliz. Criança tem outro modo de ver o mundo e o que eu sentia era uma profunda admiração por elas, que sabiam ler, escrever, falar poemas bonitos. Aos nove anos de idade, estava morando com meu tio-pai e minha tia-mãe em Belo Horizonte e eles ficaram sabendo da existência do braile e me matricularam numa escola para cegos. Em dois meses, eu sabia ler e escrever em braile. O mundo ganhava uma outra dimensão pra mim. Aqueles pontinhos tinham mesmo um surpreendente poder e me levavam para a ilha onde eu podia estar com Robson Crusoé, me colocavam na companhia de Pinóquio. Ia conhecer muito mais sobre as princesas, bruxas e outros seres mágicos de que gostava tanto.
Você é professora e casada, não é?
Aos vinte anos, iniciei o curso de Letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trabalhei muitos anos dando aulas de português para ensino médio e infantil. A vida profissional ia bem, eu dava aulas para pré-vestibular. Só me incomodava a dificuldade para namorar. O preconceito existia, bem evidente, maior que hoje. Mas, como na vida tudo tem que dar certo, um dia, o namorado apareceu. O casamento, sete anos depois. Hoje moro em Belo Horizonte com meu marido e nossos dois filhos. Eles três convivem bem com a minha limitação. São inteligentes e adoram ler. Isso é ótimo. Temos muito que compartilhar.
Por que começou a escrever?
Literatura é meu lazer, e sempre tive mania de reler os livros de que gosto. Também me divirto muito escrevendo. Tornei-me escritora por uma razão maior: eu queria muito trabalhar em favor do livro com duas escritas. Eu queria que as crianças cegas pudessem também comprar seus livros de literatura em livrarias. Para isso acontecer, era necessário arranjar espaço para o Braile no livro da criança que enxerga. Era preciso haver um projeto gráfico para acrescentar Braile e desenhos em alto-relevo num livro colorido e bonito, capaz de agradar a qualquer criança, cega ou não. Foi muito difícil convencer uma editora de que esse projeto do "livro plural, inclusivo" era viável. As editoras tinham medo de investir nessa novidade, temiam o insucesso do projeto.
Como as crianças receberam os seus livros?
Felizmente meus livros de literatura infantil com duas escritas têm hoje grande aceitação em todo o país. São bem recebidos pelo público infantil. A bruxa mais velha do mundo e Que será que a bruxa está lavando?, tiveram edição esgotada logo nos primeiros meses, após seu lançamento. Sou muito zelosa com meus livros. As ilustrações têm que ser lindas. E faço questão de que meu texto seja literatura. Livro árido, de história inventada apenas para ensinar e para doutrinar, isso não é de modo algum literatura, e então não é o que eu quero fazer. Eu própria gosto de ler livros que me emocionam, que me surpreendem, que me fazem rir (ou sorrir), que me deixam com saudade, com vontade de reler, de ficar pensando... São livros assim, e com duas escritas, que eu quero publicar, para divertir a meninada.
E o Prêmio Sentidos 2007, como foi?
Neste ano de 2007, participei do I Prêmio Sentidos, na categoria literatura. Fiz minha inscrição pensando ser uma oportunidade de falar sobre meu trabalho, sobre a importância do livro com duas escritas. Fiquei entre os finalistas. A cerimônia de premiação, com entrega dos troféus, foi um evento fantástico, cheio de emoções para mim. Eu, deficiente entre outros deficientes, estava impressionada com o talento de muitos dos outros premiados e participantes. Ouvi o Hino Nacional, tocado ao piano, "com três dedos". Gostei de ver tantas pessoas alegres falando espontaneamente de suas dificuldades, desafios, capacidade de superação.
O que acha da iniciativa?
O Prêmio Sentidos está a serviço da inclusão. Aprender a aceitar o outro, incluir o outro, conduz necessariamente a um segundo aprendizado, que é a auto-aceitação. Numa sociedade onde cada um aceita e respeita a si mesmo e ao outro, claro, vai viver um povo muito mais feliz. É por isso que são tão importantes as ações que visam a promover inclusão.
Quais são seus planos futuros?
Hoje quero seguir em frente, continuar publicando meus livros de literatura infantil com duas escritas. E continuar trabalhando em favor de uma escola inclusiva, de uma sociedade inclusiva. É maravilhoso saber que muita gente está também comprometida com esse trabalho.
Reportagem: Paulo Kehdi
Inserida em: 16/10/2007
Reportagem: Paulo Kehdi
Inserida em: 16/10/2007
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